Nota do Editor
- Único autor nikkei reconhecido pelo Guinness, Ryoki Inoue transforma a memória de seus ancestrais em literatura visceral onde a katana do passado encontra a caneta do presente.
A história da imigração japonesa no Brasil ganha carne e alma ao ser narrada por quem carrega no DNA a disciplina do bushidô e, na trajetória, a cicatriz das travessias forçadas.
Em 1912, o casal Harema Inoue e Kanetiyo Kira deixou o Japão rumo ao Brasil em busca de sobrevivência. Em 2025, seu neto Ryoki Inoue, médico, ex-militar, e escritor recordista mundial, ainda carrega os ecos dessa partida. Entre arrozais, sanatórios e laços multiculturais, a saga da família Inoue é, ao mesmo tempo, uma crônica da imigração japonesa e um testemunho vívido da força da miscigenação no Brasil.
Um pedaço do Japão no interior do Brasil
A família Inoue não chegou na primeira leva de imigrantes. Vieram depois e mesmo assim, cedo demais para encontrar qualquer facilidade. Harema, que estudara ao lado do lendário almirante Yamamoto na Marinha Imperial, abandonou o fardamento para cuidar das terras, após a crise da era Meiji destruir a estabilidade agrícola. Sua esposa, Kanetiyo, de linhagem samurai, passou a produzir papel de arroz para sobreviver.
A terra natal foi trocada por outra igualmente árdua: o noroeste do Paraná. Depois, o interior paulista. Trouxeram algum dinheiro, sim, mas não trouxeram ilusões. Enfrentaram a má-fé do sistema imigratório, que lhes entregou roupas ocidentais do século XIX como disfarce de dignidade. Começava ali o conflito entre ser e parecer — um dilema que atravessaria gerações.
“Forçaram minhas avós a calçar sapatos de salto alto. Elas nunca tinham visto aquilo. Era um teatro para a chegada dos imigrantes — um teatro com figurino vencido”, relembra Ryoki, no livro “Saga“, encomendado pela Editora Globo para o Centenário da Imigração.
Das batatas à biblioteca: a reconstrução por dentro
No Brasil, os Inoue recriaram a vida a partir do que havia: a terra e o estudo. O filho Ryoma tornou-se médico. Outro, Gervásio, foi advogado e por décadas presidiu a Cooperativa Agrícola de Cotia. As filhas seguiram os maridos para os rincões da agricultura. Um futuro que misturava enxada com livros.
Foi em meio a esse chão que nasceu Ryoki, em 1946, no pós-guerra imediato. Filho de um médico e de uma professora portuguesa (La Salette, intelectual humanista que lecionava filosofia, latim e grego), ele cresceu entre São Paulo e os campos de Taubaté. Os finais de semana na fazenda lhe ensinaram o gosto pelo silêncio da terra. E os corredores dos sanatórios em Campos do Jordão, onde os pais se conheceram, ambos tuberculosos, lhe mostraram o valor da resistência.
“Meu pai atendia todos os sanatórios. Minha mãe ensinava francês e português. O amor dos dois foi um escândalo entre as famílias. Mas seguiu.”
O bisturi trocado pela máquina de escrever
Ryoki formou-se em medicina. Mas o desrespeito ao ofício, a burocracia do sistema de saúde e o sucateamento do INAMPS nos anos 80 o empurraram para outra trincheira: a da literatura. Escreveu para sobreviver. Mas ao escrever, moldou um legado que hoje atravessa continentes.
Com mais de 1.200 livros publicados, sob 39 pseudônimos, Ryoki entrou para o Guinness como o autor mais prolífico do mundo. Mas sua obra não é apenas quantidade: é persistência transfigurada em palavras. É Japão que fermenta no solo brasileiro. É prova viva de que a miscigenação, quando verdadeira, gera complexidade, não apagamento.
“Não escrevi para bater recorde. Escrevi porque precisava alimentar minha família”, diz, com uma honestidade que desarma o marketing.
Samurais, sushi e literatura digital
Apesar de nunca ter conhecido o Japão, Ryoki internalizou a cultura dos antepassados como quem respira. Desde os sete anos, treinava judô e caratê. Participava das festas típicas nas fazendas. Com o tempo, sua esposa francesa, Nicole, também se rendeu à culinária japonesa, tanto que aprendeu a preparar pratos com precisão ritualística.
Hoje, Ryoki desenvolve uma série sobre samurais, um mergulho literário nos valores que herdou por osmose: honra, paciência, tenacidade. Seu personagem Mário Kiyoshi Nogaki, espécie de James Bond nipo-brasileiro, já vendeu cem mil exemplares no Japão. Ele escreve agora uma nova leva de romances curtos, os e-Pockets, em busca de parceiros que queiram resgatar o livro de bolso no Brasil.
Uma família, quatro bandeiras e um país reinventado
A identidade de Ryoki é um entrelaçado raro: Brasil, Japão, França e Portugal. Com a neta Caroline e o filho Georges, também escritor, jornalista e responsável pelo Selo Editorial Ryoki Produções, o autor constrói, todos os dias, um novo tipo de herança. Não apenas literária. Mas ética.
“Tenho tentado passar para meu filho e neta o que aprendi com o espírito japonês. Paciência, honra, determinação. A vida ensinou que essas coisas não saem de moda.”
Ryoki se define como um exemplo — não por vaidade, mas por constatação: o único nikkei no Guinness, referência cultural para quatro continentes, produto vivo da miscigenação possível.
O que permanece
117 anos depois da chegada dos primeiros imigrantes japoneses, o Brasil continua colhendo os frutos das raízes plantadas em silêncio. Mas o que Ryoki Inoue nos lembra é que esse silêncio tem voz. E que essa voz precisa ser ouvida. A imigração japonesa não é uma nota de rodapé na história nacional. É capítulo visceral. E Ryoki, com sua vida, seus livros e seu testemunho, é uma das páginas mais eloquentes.
O que me torna japonês talvez não esteja no sangue. Está na postura. No modo de encarar o fracasso. No silêncio que constrói. E na palavra que, mesmo breve, carrega honra. (Ryoki Inoue)